Quero partilhar convosco esta coluna do "Público", apenas com o intuito da reflexão.
In PÚBLICO
"O Ministério da Cultura resolveu criar uma secção de tauromaquia no
Conselho Nacional de Cultura a pretexto de que lidar touros seria uma
tradição cultural portuguesa a preservar. Mas a tradição é mais antiga,
do tempo em que humanos e animais lutavam na arena para excitar os
nervos da multidão com o sangue e a morte anunciada. A piedade, que é um
valor mais antigo do que Cristo, veio, na sua interpretação cristã,
salvar disto os humanos. Esqueceu-se, porém, dos animais.
Há um momento nas touradas em que o touro, muito ferido já pelas
bandarilhas, o sangue a escorrer, cansado pelos cavalos e as capas,
titubeia e parece ir desistir. Afasta-se para as tábuas. Cheira o céu.
Vêm os homens e incitam-no. A multidão agita-se e delira com o sangue. O
touro sabe que vai morrer. Só os imbecis podem pensar que os animais
não sabem. Os empregados dos matadouros, profissionais da sensibilidade
embaciada, conhecem o momento em que os animais cheiram a morte
iminente. Por desespero, coragem ou raiva (não é o mesmo?), o touro
arremete pela última vez. Em Espanha morre. Aqui, neste país de maricas,
é levado lá para fora para, como é que se diz? ah sim: ser abatido. A
multidão retira-se humanamente, portuguesmente, de barriga cheia de
cultura portuguesa, na tradição milenar à qual nenhuma piedade chegou
Os toureiros têm pose que se fartam (e com a qual fartam toda a gente).
Pose de hombre, pose de macho. Mas os riscos que de facto correm são
infinitamente menores que a sorte que inevitavelmente espera os touros,
que o sofrimento e a desorientação que infligem aos touros para o seu
próprio prazer e o da multidão. Dá vontade de dizer que quem se porta
assim, quem mostra orgulho de se portar assim, tem entre as pernas, e
não apenas literalmente, órgãos bem mais pequenos que aqueles que os
touros exibem. Os toureiros são corajosos mas entram na arena sabendo
que haverá sempre quem os safe, senão à primeira colhida, então à
segunda. Às vezes aleijam-se a sério e às vezes morrem, o que talvez
prove que os deuses da Antiguidade são justos, vingativos e amigos de
todos os animais por igual. Os touros, esses, não têm ninguém que os vá
safar em situação de risco, estão absolutamente sós perante a morte.
Querem os toureiros ser hombres até ao fim? Experimentem ser tão homens
como eram os homens e os animais na Antiguidade: se ficarem no chão,
fiquem no chão. Morram na arena. É cultura. A senhora ministra da
Cultura certamente compensará tão antigo costume.
Também era da tradição, em Portugal por exemplo, executar em público os
condenados, bater nas mulheres, escravizar pessoas. Foi assim durante
milénios. Ninguém via mal nenhum nisso a não ser, confusamente, com
dúvidas, as próprias vítimas. Até que a piedade, na sua interpretação
moderna e laica, acabou com tão veneráveis tradições.
Que será preciso para acabar com a tradição da tourada? Que sobressalto
do coração será necessário para despertar em nós a piedade pelos
animais?"
Paulo Varela Gomes (Historiador)
In PÚBLICO
"O Ministério da Cultura resolveu criar uma secção de tauromaquia no
Conselho Nacional de Cultura a pretexto de que lidar touros seria uma
tradição cultural portuguesa a preservar. Mas a tradição é mais antiga,
do tempo em que humanos e animais lutavam na arena para excitar os
nervos da multidão com o sangue e a morte anunciada. A piedade, que é um
valor mais antigo do que Cristo, veio, na sua interpretação cristã,
salvar disto os humanos. Esqueceu-se, porém, dos animais.
Há um momento nas touradas em que o touro, muito ferido já pelas
bandarilhas, o sangue a escorrer, cansado pelos cavalos e as capas,
titubeia e parece ir desistir. Afasta-se para as tábuas. Cheira o céu.
Vêm os homens e incitam-no. A multidão agita-se e delira com o sangue. O
touro sabe que vai morrer. Só os imbecis podem pensar que os animais
não sabem. Os empregados dos matadouros, profissionais da sensibilidade
embaciada, conhecem o momento em que os animais cheiram a morte
iminente. Por desespero, coragem ou raiva (não é o mesmo?), o touro
arremete pela última vez. Em Espanha morre. Aqui, neste país de maricas,
é levado lá para fora para, como é que se diz? ah sim: ser abatido. A
multidão retira-se humanamente, portuguesmente, de barriga cheia de
cultura portuguesa, na tradição milenar à qual nenhuma piedade chegou
Os toureiros têm pose que se fartam (e com a qual fartam toda a gente).
Pose de hombre, pose de macho. Mas os riscos que de facto correm são
infinitamente menores que a sorte que inevitavelmente espera os touros,
que o sofrimento e a desorientação que infligem aos touros para o seu
próprio prazer e o da multidão. Dá vontade de dizer que quem se porta
assim, quem mostra orgulho de se portar assim, tem entre as pernas, e
não apenas literalmente, órgãos bem mais pequenos que aqueles que os
touros exibem. Os toureiros são corajosos mas entram na arena sabendo
que haverá sempre quem os safe, senão à primeira colhida, então à
segunda. Às vezes aleijam-se a sério e às vezes morrem, o que talvez
prove que os deuses da Antiguidade são justos, vingativos e amigos de
todos os animais por igual. Os touros, esses, não têm ninguém que os vá
safar em situação de risco, estão absolutamente sós perante a morte.
Querem os toureiros ser hombres até ao fim? Experimentem ser tão homens
como eram os homens e os animais na Antiguidade: se ficarem no chão,
fiquem no chão. Morram na arena. É cultura. A senhora ministra da
Cultura certamente compensará tão antigo costume.
Também era da tradição, em Portugal por exemplo, executar em público os
condenados, bater nas mulheres, escravizar pessoas. Foi assim durante
milénios. Ninguém via mal nenhum nisso a não ser, confusamente, com
dúvidas, as próprias vítimas. Até que a piedade, na sua interpretação
moderna e laica, acabou com tão veneráveis tradições.
Que será preciso para acabar com a tradição da tourada? Que sobressalto
do coração será necessário para despertar em nós a piedade pelos
animais?"
Paulo Varela Gomes (Historiador)


